É preciso aumentar o rigor da Lei Seca?
NÃO
O que me chama particularmente a atenção na recente escalada de rigor
contra os motoristas que consomem álcool é a tipificação da infração
como crime.
Não sou contra considerar ilícito tal comportamento (enquanto
infração punível com multa), e acho que o motorista que tiver causado
danos à vida de outrem sob efeito do álcool pode ter sua pena bastante
agravada. Considero desproporcional à realidade, contudo, considerar tal
comportamento um crime, podendo desencadear a prisão do motorista
infrator.
Pergunto:
1) Por que não é considerado crime dirigir com sono? Se as
estatísticas levassem esse fator em conta, veríamos que muitos acidentes
são causados por motoristas que adormecem ao volante. E, se não existir
ainda, deve ser fácil inventar algum aparelhinho capaz de medir quanto o
indivíduo dormiu nas últimas 24 horas;
2) Por que não é considerado crime dirigir falando ao celular?
Dependendo da situação, o celular pode ser muito mais perigoso, no
sentido de desconcentrar o motorista, do que meia dúzia de chopes;
3) Por que não é considerado crime dirigir um carro com defeito?
Todos sabemos que boa parte dos acidentes (isto já foi comprovado) é
causada por carros defeituosos. Isso sem falar na má qualidade das
estradas, responsáveis por outro tanto dos acidentes, sem que ninguém
cogite punir os administradores responsáveis por elas;
4) Por fim, mas não menos importante, por que não é considerado crime
dirigir mal? Alguém duvidaria de que essa é outra causa importante
(talvez a mais importante, sobretudo quando combinada a um dos três
fatores acima) para a ocorrência de acidentes?
Não seria tão difícil assim fiscalizar esse comportamento: por meio
das milhares de câmeras que se multiplicam Brasil afora (“Big Brother”
em ação!), poderiam ser verificadas diversas situações típicas de
incompetência ao volante (dirigir colado no carro da frente, transitar
na faixa da esquerda sem necessidade, fechar o carro do lado, frear
bruscamente sem necessidade etc., sem falar naquelas condutas que já são
fiscalizadas, mas não são consideradas crime).
Sim: aparentemente, dirigir a 250 km/h é menos grave, aos olhos do
legislador pátrio, do que dirigir cautelosamente, para percorrer um
trajeto curto, tendo tomado um ou dois chopes. Pois como responder a
essas perguntas e entender as assimetrias da lei a não ser reconhecendo a
efetividade, cada vez maior, desse fenômeno que costumo chamar de
“neomoralismo da saúde”?
Basta uma coisa problemática estar relacionada a tabaco, a álcool ou a
outras drogas para que esses sejam logo considerados os grandes vilões
da história, sem levar em conta outros fatores e nuanças do problema
(vide a recente demonização dos “maconheiros da USP”).
Fulano usou droga? Que vá para a cadeia! Sicrano fumou em local
fechado? Que vá para a cadeia! (Sim, isso logo será crime!). Beltrano
bebeu e dirigiu (não importando se para percorrer uma curta distância
entre o bar e sua casa ou se para pegar uma estrada e andar a 250 km/h)?
Que vá para a cadeia!… Ora!
Que se construam logo novas cadeias! E não porque as atuais estejam
abarrotadas (como estamos fartos de saber), mas porque logo a sociedade
inteira estará nelas (tal como foi para o hospício em “O Alienista”, de
Machado de Assis).
*FERNANDO COSTA MATTOS, doutor em filosofia pela USP,
é professor de filosofia na Universidade Federal do ABC e pesquisador
do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
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