Minha geração vivia o sabor e a energia
dos vinte e poucos anos. Jovens latinos sem dinheiro no bolso, bebendo
nos bares, nos corredores universitários e nas canções de Milton,
Gonzaguinha e Mercedes Sosa uma esperança que pertencia ao continente
inteiro.
aquela virada de década, dos 70 para os
80, os ventos da mudança sopravam nas áreas de desembarque dos
aeroportos brasileiros, aonde dezenas de exilados retornavam ao País com
o bilhete da Anistia. Com eles, veio o desejo democrático do voto
direto.
Nós ainda levávamos em conta o antigo
clichê de que no Brasil não se misturavam política, futebol e religião.
Os dois últimos, inclusive, nós tratávamos como cachaças emocionais do
povo, que diante do gol e de deus, se deixava embriagar e alienar.
Mas em 1982, quando 70 milhões de
brasileiros reconquistaram o direito de eleger diretamente os
governadores dos estados, um jovem barbudo, magricela e bom de conversa
misturou numa só conquista a tríade que o velho ditado insistia em
separar.
O jogador Sócrates tinha 24 anos quando
em 1978 chegou ao Corinthians, depois de surpreender público e imprensa
pelo Botafogo de Ribeirão Preto. Nos anos anteriores fora goleador do
Paulistão. No Brasil da abertura política, ele chegou revolucionando o
Timão.
Com a altura de um jogador de basquete,
vara de manipular nuvens, ele desafiava as leis da aerodinâmica se
movendo num equilíbrio de bailarino com pernas de pau. Tinha um futebol
alegre e explosivo movido por uma mente brilhante e um andar
desengonçado.
Contemplado num todo, Sócrates jogava o
fino da bola, e era pura elegância na junção dos dribles em passos
largos, no cabeceio poderoso e nos passes milimétricos dados com o
calcanhar. Era o Curupira encantando o povo e enganando os adversários.
Em setembro de 1979, a revista Placar
botou nas ruas uma edição especial com o título “Sócrates” e um
subtítulo que até parecia fanatismo corintiano: “o melhor jogador do mundo”. O anúncio informava “a vida, os gols e o futuro do doutor”, alusão ao curso de Medicina do craque.
E no embalo do resgate democrático
nacional, aquele cara com nome de filósofo começou a juntar com gols e
alegria os cacos de um clube carente de vitórias. Em mais de vinte anos,
uma taça de 1977 era tudo que a nação corintiana tinha para louvar.
Pela via de um movimento político
interno, Sócrates comandou a maior revolução já vista num ambiente
clubístico. Com o pé na bola e a cabeça na filosofia, tornou-se o líder
da “Democracia Corintiana”, o craque de um sindicalismo lúdico e
apaixonante.
O Brasil se reconstruía nas ruas, nos
diretórios estudantis, embalado por Ivan Lins: “Começar de novo… Vai
valer a pena ter amanhecido, ter me rebelado, ter me debatido…” E
Sócrates virando a mesa e recomeçando a História do Corinthians.
As lideranças políticas que retornavam
ao País pregavam as mudanças a partir da consciência do povo, que
precisava tomar as rédeas do próprio destino. No Parque São Jorge, algo
similar já estava em prática, com os craques conscientes do jogo
político.
O ano de 1979 acabou com o Corinthians
de Sócrates campeão, enquanto no Brasil as sementes da Democracia eram
espalhadas pelas cidades. A chegada dos anos 80 trouxe uma primavera
democrática no País e consolidou o futebol cidadão do mestre corintiano.
E se o voto direto já funcionava no
Timão, nas ruas ele teimava em não brotar no terreno pantanoso do
passado. As duas nações marchavam rebeldes ao som de Chico e Elis e nos
passos largos do gênio que fazia irreverências mil pra noite do Brasil.
O mago do calcanhar levou o Corinthians
ao bi em 82 e 83 em duas campanhas marcadas pelo talento do seu futebol e
pela implantação de uma política pioneira em que jogadores e dirigentes
ditavam os destinos, esportivo e administrativo, do clube.
Sócrates no Corinthians conseguiu unir o
que a sociologia de boteco desunia. Afinal, política, futebol e
religião jamais deixarão de mover a vida corintiana. Sócrates
acrescentou apenas uma liderança e um espírito libertino. No rádio da
época, Simone cantava: “Pra se combinar comigo tem que ter opinião”.
Em 1984, um tsunami de cidadania invadiu
as ruas do Brasil. Multidões gritavam por eleições diretas para
presidente. Chico Buarque avisava aos ex-ditadores: “Apesar de você
amanhã há de ser outro dia”. No Corinthians, o passado reagia contra a
Democracia.
A categoria de Sócrates já era um
assunto internacional, conhecida e consagrada na Copa da Espanha de 82,
quando a seleção brasileira repetiu o trauma da Hungria de 54 e da
Holanda de 74, perdendo o torneio, mas encantando o mundo.
O rico futebol italiano veio buscá-lo. O
protesto da massa alvinegra foi uníssono. Nas ruas do Brasil, o povo
protestava diante da ameaça do Congresso Nacional derrubar as Diretas. O
ídolo tentou uma jogada desesperada: “Se cair as Diretas, vou-me
embora”.
O Brasil não votou para presidente
naquele ano e Sócrates foi brilhar em campos europeus, na Fiorentina.
Deixou um legado difícil de repetir-se. Foi gênio, líder e intelectual
num só corpo. Numa visão lúdica da política, ele, sim, merece ser
lembrado como “O Doutor-Diretas”. (AM)
*Crônica publicada originalmente em 26/10/2009 na coluna PORTFOLIO (hoje ALEX MEDEIROS) de O Jornal de Hoje, Natal.
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